terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Missa dos mortos

Morando da sacristia do templo, cuja conservação lhe era confiada, achava-se deitado altas horas quando ouviu bulha na capela. Era uma daquelas noites frias e chuvosas de Ouro Preto, quando em Minas começa o tempo das águas. Estava com a cabeça debaixo do cobertor e todo encolhidinho para esquentar-se melhor. Ouvindo os rumores, descobriu-se e viu na nave uma claridade desusada. Seriam ladrões? Mas o templo era pobre e qualquer ladrão por mais estúpido, saberia que a capela das Mercês não dispunha de prataria, nem de qualquer coisa que valesse um sacrilégio. Enfim, tudo pode acontecer… Estava ainda nessas cogitações quando ouviu, distintamente cantado por vozes estranhas, o "Deus nos salve" do começo da ladainha. Ergueu-se e, com uma coragem de que ele próprio não se julgaria capaz, encaminhou-se pelo corredor até a porta que dava para a capela-mor. Penetrando por ela, verificou que a igreja estava toda iluminada, com os lustres acesos. E apinhada de fiéis. No altar-mor, um sacerdote devidamente paramentado, celebrava a missa. João Leite estranhou a nuca do padre, pelada, lisa e branca; não se lembrava de calvície tão completa no clero de Ouro Preto, que ele bem conhecia. Os fiéis que enchiam a nave trajavam de preto. Entre eles, alguns homens de cogula, algumas mulheres de hábito da Irmandade das Mercês. Todos ajoelhados e de cabeça baixa. Quando o celebrante voltou-se para dizer o Dominus vobiscum, o zelador viu que o religioso tinha uma simples caveira em lugar da cabeça. Assustou ainda mais com aquilo e, reparando melhor nos assistentes, agora de pé, constatou que os mesmos não passavam de esqueletos vestidos. Então, correu para a porta ao lado. Essa porta que dava para o cemitério do adro e, por inútil, vivia fechada com tranca e tramela, estava agora escancarada para a noite chuvosa, batida pela ventania.

Nenhum comentário:

Postar um comentário